Trata-se de uma espécie de "Menu Cultural" do que o escritor vem produzindo no campo da poesia,conto, crônica,roteiro de cinema e TV,peça de teatro, e recentemente: novelas on-line. Além de compartilhamento de pensamentos e troca de experiências com todos aqueles que de alguma forma colaboram com a cultura sergipana.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Jingle Bells



 
Quando olhei o céu daquela tarde de sábado, pensei que contemplava alguma obra prima de "Da Vinci" ou "Picasso". O dia estava perfeito! O sol, como sempre, observava o mundo. Sua beleza e imponência eram refletidas na vidraçaria do "Shopping Center". Por minha vontade contemplaria aquela cena até vê-lo adormecer, mas por insistência de um amigo fui para o templo do capitalismo selvagem: O Shopping Center.
Enquanto meu amigo comia um "Mac Donald", fui fisgado pelas ondas sonoramente divinas que vinham de uma loja de discos: Bolero de Ravel. Infelizmente, o que é bom, dura pouco, pois alguns mauricinhos e patricinhas reclamaram ao gerente, e, o vendedor teve que calar Ravel para tocar a “dança do serrote”. Detesto quando vejo, na prática, a visão apalermada de vida de algumas pessoas. Elas não enxergam que somos compostos orgânicos constituídos pelos mesmos átomos, sou seja, independente de raça, cor, origem e classe social, somos iguais. Néscios, só sabem encarar as pessoas procurando convencê-las de que o  mundo é de quem nasceu para conquistá-lo.
Evitando participar daquela vulgarização, refugiei-me na vitrine de miniaturas… Alguns desses seres que se julgam humanos e reservam-se o direito de serem humanos somente às vésperas do natal, motivados pelo apelo comercial da figura do Papai Noel, e não de sentido real, o Cristão, são menores que estas bonequinhas.
Uma vendedora ligou uma boneca que começou a dizer inúmeras vezes, pra mim, um desconhecido filho de Deus, "Eu te amo". Engraçado, vejam só aonde chegamos: Valorizaram tanto o materialismo e o individualismo que a boneca ficou mais humana que todos nós.
Fiquei muito comovido com o singelo gesto da bonequinha, e ficaria por horas ouvindo-a se não houvesse um súbito tumulto em meio à Pra de Alimentação: uma moça de aparência humilde passou mal e após agonizantes gemidos, desmaiou.
Para os burgueses que ali circulavam atarefados em escolher presentes para seus amigos secretos, aquilo não passou de uma ceninha, tipo teatro de rua, e se dispuseram a apenas assistir por meia hora. Não fizeram nada pra ajudar, ficaram apenas admirando o padecer da enferma.
Os gerentes ordenaram que os seguranças não autorizassem que ninguém mais se aproximasse, tampouco que os funcionários os socorressem, pois as vendas estavam fervendo e aquele ritmo não podia ser interrompido. Afinal, como  gostava de repetir aos seus subordinados nas reuniões de início dos trabalhos: “Vamos vender, vender muito”... Afinal, não é todo dia que as pessoas estão com amor no coração e dispostas a gastar. E aquele dia estava ótimo, se brincasse perderia apenas para o natal... E para ele, prejudicar as vendas em época natalina, era um pecado, era uma heresia.
No auge da agonia da desconhecida, um auxiliar dos serviços gerais que acabava de lavar os sanitários, correu até a moça bradando aflito uma sequência amplamente variada de neologismo apropriada para denegrirem a imagem dos palermas burgueses, mas eles não deram importância.
Comovido e ao mesmo tempo chocado com a reação das pessoas, o herói anônimo, tomou a jovem nos braços e dirigiu-se a porta. Antes de sair, uma déspota voz ameaçava demiti-lo se não voltasse para seus afazeres. Emocionado, o servente, falou soluçando, com o pesar das dores do mundo.
- Prefiro perder o emprego à minha dignidade.
Em seguida dirigiu-se a porta e levou a garota nos braços para o Hospital mais próximo, a pé, ninguém o acompanhou.
Já era noite, os energúmenos burgueses continuaram fazendo suas compras ao som de Jingle Bells.

 


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Comentário:

Esta crônica foi escrita em meados de 2001. Lembro que fazia pouco tempo que tinha tido o privilégio de conhecer a poética de Álvaro de Campos, um dos fantásticos heterônimos de Fernando pessoa. E entre tantas pérolas uma em especial me fisgou: “Tabacaria”. Principalmente o trecho: "Vivi, estudei, amei e até cri, agora não há um mendigo que eu não inveje só por não ser eu." . A ideia de escrever esta crônica veio da experiência de sentar na praça de alimentação e visualizar milhares de estranhos se cruzando na época natalina, olhando para o chão, para não correrem o risco de olhar de frente para algum estranho e ter que dizer um “Boa noite!” Cheguei em caso com esse sentimento vergonhoso do que nos tornamos e comecei a escrever esta crônica, que hoje sofre uma pequena adaptação para contextualizar com os tempos de hoje.

 


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"Conheça todas as teorias, domine as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana." - Gustav Jung