Trata-se de uma espécie de "Menu Cultural" do que o escritor vem produzindo no campo da poesia,conto, crônica,roteiro de cinema e TV,peça de teatro, e recentemente: novelas on-line. Além de compartilhamento de pensamentos e troca de experiências com todos aqueles que de alguma forma colaboram com a cultura sergipana.
Viver é muito bom. Note que eu disse viver, por ser distinto de existir. E o melhor de tudo neste fascinante jogo que chamam vida, são os ensinamentos que surgem de forma inesperada. E hoje, não foi diferente.
Acordei. Arrumei a cama. Ouvi no rádio o balanço do carnaval. Ouvi estatísticas de mortes em acidentes automobilísticos, casuais e outras, muitas, violentas. Vesti-me, fui à faculdade, banhei-me, almocei, escovei os dentes, vesti-me novamente, trabalhei, banhei-me, vesti-me, jantei, escovei os dentes, e mais uma vez ,fui à faculdade. Quinta feira. Um dia que começou como tantos outros.
Não demorou muito e o roteirista do universo jogou uma informação que mudaria drasticamente o andar das coisas. Num comentário à meia boca, baixo, para não atrapalhar as acaloradas discussões dos colegas de classe acerca dos princípios processuais penais perceptíveis na comissão interamericana de direitos humanos, recebi a triste notícia de que a mãe de um querido amigo tinha falecido. Quase trinta dias de batalha para respirar só mais uma vez, de pulsar sangue, só mais uma vez para o cérebro, o coração, e os demais órgãos. Tarefas simples, automáticas para nós todos, mas que se tornara uma luta diária. Por fim, ela descansou. Diante do último nascer do sol.
Fiquei até o final da aula, mas meus pensamentos já não estavam mais com Nestor Távora. Pensava em muitas coisas... Coisas... Coisas que fluíam para um ponto em comum. O mistério da vida. Pensava em como sou afortunado em ter conquistado tantos tesouros: amigos, sucesso profissional, ter encontrado o amor e a felicidade plural aos trinta e poucos anos. Estava feliz, e tinha plena consciência disso.
Em poucos minutos cheguei ao velatório. Já na porta fui envolvido por uma agradável sensação de paz espiritual, que só é possível num ambiente em que o amor puro, sincero e condicional estão presentes. Aquilo me encorajou a entrar e permanecer o tempo que quisesse, pois senti uma energia boa que me dizia que todos ali presentes, parentes e amigos, se amavam de todo coração. Sentimentos raros nos dia de hoje. Havia um silêncio que dizia muita coisa.
Assim que fui visto, meu querido amigo cumprimentou-me, e em seguido fui apresentado aos familiares. Pessoas de olhares vívidos, sinceros, que não carregavam o pesar de não ter dito a pessoa que acabara de morrer que a amavam do fundo do coração. Estranhamente era confortante estar ali.
Ao passo em que tomara consciência das circunstâncias penosas que precederam a passagem daquela Senhora, mãe, esposa e avó para junto dos espíritos de luz, ratifiquei a certeza que ali descansava uma pessoa que amou, foi e por muito tempo continuaria sendo amada. Uma pessoa que seria lembrada com doces lágrimas e sorrisos nostálgicos.
Por volta das 3 horas da madrugada, o Pai chegou. O avião atrasara. Engraçado, não sei por que tinha a sensação que iria encontrar uma pessoa irritada pelo atraso do vôo, nervosa ou até mesmo revoltada com Deus pela perda de uma esposa que o acompanhou durante bem vividos 53 anos de casamento. Não foi o que vi.
O Senhor de 83 anos aproximou-se do caixão e ficou diante dele durante vinte longos minutos. Olhei ao redor e as pessoas continuaram fazendo o que estavam fazendo. Abraçando os filhos, os netos, tentando dizer alguma coisa que confortasse, outros atendiam telefones, pegavam copos d’água ou tomavam cafezinhos. Mas o velho não. O velho ficou parado, contemplativo. Numa sintonia que, creio, ninguém percebeu. Ninguém se intrometeu. Era um momento único, dele.
Durante todo aquele tempo fiquei imaginando no que o velho estava pensando. Mas ao prestar atenção no que os pés, as mãos e o rosto diziam pra mim ficou evidente. Ainda mais quando me lembrei do que o filho tinha me dito há alguns minutos, que a morta e o velho foram casados por 53 anos ininterruptos. 53 anos. E que apesar dele ter 83 e ela 76, era ela quem administrava a casa, ia ao banco, reunia a família em ocasiões festivas, ou simplesmente o confortava e saía para caminhar de mãos dadas, assim como fizeram pela primeira vez há 53 anos.
Observei muito o velho. Queria muito entender o que se passava na mente dele. Será que ela estava se despedindo? Não, ele não estava tocando-a. Será que estava em transe tentando ter certeza de que tudo aquilo tudo não passava de um sonho e a qualquer momento a sua amada senhora o acordaria e ele veria que não estava no Brasil, e sim no pequeno vilarejo da Bolívia em que criou seus filhos e alguns netos? Não, não era isso. O velho permanecia estático, hipnotizado. Entretanto, ao sutilmente me aproximar para tentar ver no reflexo dos olhos o que ele via, enxerguei a prova inexorável de que o amor pra toda vida existe. Vi nos olhos do velho o número 53. 53 anos de cumplicidade, de compreensão, fidelidade, dedicação, harmonia, de amor puro. 53. O velho via deitado no caixão um pedaço de si. De doces lembranças. De vários ensinamentos aprendidos e compartilhados com sua Senhora. O velho, não estava se despedido da sua amada esposa.Era mais que isso. Com ela, metade do teu ser se perdia. 53. O Velho estava se despedido dele mesmo. Eis a lição mais linda que a vida poderia me dar.
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Comentário:
Neste mês de fevereiro, mês em que festejo mais uma primavera, a morte bateu-me a porta algumas vezes. E como não podia ser diferente, mais uma vez ermiti-me refletir sobre o mistério da vida. Antes de ontem, dia 24, fui ao velório da mãe de um querido amigo, e depois de passar algumas horas rezando e conhecendo um pouco mais dessa pessoa fantástica e de uma família igualmente fantástica, uma cena em especial me cativou. Uma cena que nunca esquecerei. E por isso mesmo decidi escrever uma crônica como uma singela homenagem a mãe desse querido amigo que partiu esta semana, e a tantos anônimos que dia após dia deixam os seus. O link segue abaixo. Muita luz pra você e toda sua família amigo.
Nem sempre é uma das minhas poucas composições já nasceu pronta. Estava aguardando a abertura do semáforo da Avenida Pedro Calazans com Rua Estância quando do nada, esta canção veio-me 50% pronta, por isso talvez esta obra nem seja minha, seja de algum espírito iluminado. O que não seria a primeira vez, já que numa certa noite há alguns anos atrás escrevi de uma só vez cinco poemas de estilos diferentes, um seguido do outro, num intervalo de aproximadamente duas horas. Um momento ímpar. Contudo, só coloco a assinatura de Anderson Sant’ Anna porque, como disse, veio 50% pronto, e os ajustes de rima e de mensagem foram feitas com árduo trabalho de poeta. Nem sempre já um dos meus poemas preferidos, foi escrito no dia 09 de fevereiro de 2012.