Trata-se de uma espécie de "Menu Cultural" do que o escritor vem produzindo no campo da poesia,conto, crônica,roteiro de cinema e TV,peça de teatro, e recentemente: novelas on-line. Além de compartilhamento de pensamentos e troca de experiências com todos aqueles que de alguma forma colaboram com a cultura sergipana.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

53




Viver é muito bom. Note que eu disse viver, por ser distinto de existir. E o melhor de tudo neste fascinante jogo que chamam vida, são os ensinamentos que surgem de forma inesperada. E hoje, não foi diferente.

Acordei. Arrumei a cama. Ouvi no rádio o balanço do carnaval. Ouvi estatísticas de mortes em acidentes automobilísticos, casuais e outras, muitas, violentas. Vesti-me, fui à faculdade, banhei-me, almocei, escovei os dentes, vesti-me novamente, trabalhei, banhei-me, vesti-me, jantei, escovei os dentes, e mais uma vez ,fui à faculdade. Quinta feira. Um dia que começou como tantos outros.

Não demorou muito e o roteirista do universo jogou uma informação que mudaria drasticamente o andar das coisas. Num comentário à meia boca, baixo, para não atrapalhar as acaloradas discussões dos colegas de classe acerca dos princípios processuais penais perceptíveis na comissão interamericana de direitos humanos, recebi a triste notícia de que a mãe de um querido amigo tinha falecido. Quase trinta dias de batalha para respirar só mais uma vez, de pulsar sangue, só mais uma vez para o cérebro, o coração, e os demais órgãos. Tarefas simples, automáticas para  nós todos, mas que se tornara uma luta diária. Por fim, ela descansou. Diante do último nascer do sol.

Fiquei até o final da aula, mas meus pensamentos já não estavam mais com Nestor Távora. Pensava em muitas coisas... Coisas... Coisas que fluíam para um ponto em comum. O mistério da vida. Pensava em como sou afortunado em ter conquistado tantos tesouros: amigos, sucesso profissional, ter encontrado o amor e a felicidade plural aos trinta e poucos anos. Estava feliz, e tinha plena consciência disso.

Em poucos minutos cheguei ao velatório. Já na porta fui envolvido por uma agradável sensação de paz espiritual, que só é possível num ambiente em que o amor puro, sincero e condicional estão presentes. Aquilo me encorajou a entrar e permanecer o tempo que quisesse, pois senti uma energia boa que me dizia que todos ali presentes, parentes e amigos, se amavam de todo coração. Sentimentos raros nos dia de hoje. Havia um silêncio que dizia muita coisa.

Assim que fui visto, meu querido amigo cumprimentou-me, e em seguido fui apresentado aos familiares. Pessoas de olhares vívidos, sinceros, que não carregavam o pesar de não ter dito a pessoa que acabara de morrer que a amavam do fundo do coração. Estranhamente era confortante estar ali.

Ao passo em que tomara consciência das circunstâncias penosas que precederam a passagem daquela Senhora, mãe, esposa e avó para junto dos espíritos de luz, ratifiquei a certeza que ali descansava uma pessoa que amou, foi e por muito tempo continuaria sendo amada. Uma pessoa que seria lembrada com doces lágrimas e sorrisos nostálgicos.

Por volta das 3 horas da madrugada, o Pai chegou. O avião atrasara. Engraçado, não sei por que tinha a sensação que iria encontrar uma pessoa irritada pelo atraso do vôo, nervosa ou até mesmo revoltada com Deus pela perda de uma esposa que o acompanhou durante bem vividos 53 anos de casamento. Não foi o que vi.

O Senhor de 83 anos aproximou-se do caixão e ficou diante dele durante vinte longos minutos. Olhei ao redor e as pessoas continuaram fazendo o que estavam fazendo. Abraçando os filhos, os netos, tentando dizer alguma coisa que confortasse, outros atendiam telefones, pegavam copos d’água ou tomavam cafezinhos. Mas o velho não. O velho ficou parado, contemplativo. Numa sintonia que, creio, ninguém percebeu. Ninguém se intrometeu. Era um momento único, dele.

Durante todo aquele tempo fiquei imaginando no que o velho estava pensando. Mas ao prestar atenção no que os pés, as mãos e o rosto diziam pra mim ficou evidente. Ainda mais quando me lembrei do que o filho tinha me dito há alguns minutos, que a morta e o velho foram casados por 53 anos ininterruptos. 53 anos. E que apesar dele ter 83 e ela 76, era ela quem administrava a casa, ia ao banco, reunia a família em ocasiões festivas, ou simplesmente o confortava e saía para caminhar de mãos dadas, assim como fizeram pela primeira vez há 53 anos.

Observei muito o velho. Queria muito entender o que se passava na mente dele. Será que ela estava se despedindo? Não, ele não estava tocando-a. Será que estava em transe tentando ter certeza de que tudo aquilo tudo não passava de um sonho e a qualquer momento a sua amada senhora o acordaria e ele veria que não estava no Brasil, e sim no pequeno vilarejo da Bolívia em que criou seus filhos e alguns netos? Não, não era isso. O velho permanecia estático, hipnotizado. Entretanto, ao sutilmente me aproximar para tentar ver no reflexo dos olhos o que ele via, enxerguei a prova inexorável de que o amor pra toda vida existe. Vi nos olhos do velho o número 53. 53 anos de cumplicidade, de compreensão, fidelidade, dedicação, harmonia, de amor puro. 53. O velho via deitado no caixão um pedaço de si. De doces lembranças. De vários ensinamentos aprendidos e compartilhados com sua Senhora. O velho, não estava se despedido da sua amada esposa.Era mais que isso. Com ela, metade do teu ser se perdia. 53. O Velho estava se despedido dele mesmo. Eis a lição mais linda que a vida poderia me dar.



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Comentário:

Neste mês de fevereiro, mês em que festejo mais uma primavera, a morte bateu-me a porta algumas vezes. E como não podia ser diferente, mais uma vez  ermiti-me refletir sobre o mistério da vida. Antes de ontem, dia 24, fui ao velório da mãe de um querido amigo, e depois de passar algumas horas rezando e conhecendo um pouco mais dessa pessoa fantástica e de uma família igualmente fantástica, uma cena em especial me cativou. Uma cena que nunca esquecerei. E por isso mesmo decidi escrever uma crônica como uma singela homenagem a mãe desse querido amigo que partiu esta semana, e a tantos anônimos que dia após dia deixam os seus. O link segue abaixo. Muita luz pra você e toda sua família amigo.


2 comentários:

  1. Simplesmente lindo...não somente as palavras, mas...a percepção do sentimento desse senhor por sua esposa e da grande importancia dos 53 anos vividos ao lado dela...que esse sentimento, essa cumplicidade sirva de lição para muitos e que o verdadeiro amor seja eterno.

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"Conheça todas as teorias, domine as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana." - Gustav Jung